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2024 : Como explicar a ascensão da extrema-direita em Portugal cinquenta anos após a Revolução dos Cravos?

ROMA 05 Li

A 25 de abril de 1974, Portugal conheceu uma revolução espetacular. Conduzida por um grupo de militares, essa revolução pacífica e incomparável conseguiu instaurar um regime democrático depois de 48 anos da ditadura fascista do Estado Novo de Salazar. 
Quase exatamente cinquenta anos depois, a 10 de março de 2024, celebraram-se eleições legislativas, cujos resultados eleições atestaram a perda de maioria absoluta do Partido Socialista (PS), obtendo 28% dos votos e 78 deputados, superado por uma aliança de partidos de direita, liderada pelo Partido Social Democrata (PSD), que obteve 28,84 % dos votos e 80 deputados. Mas o que mais chama a nossa atenção é o resultado do partido de extrema-direita, o Chega: 18,07% dos votos e uma multiplicação exponencial do seu número de deputados (passou de 12 para 50). Com essas eleições, o partido de André Ventura afirmou-se como terceira força política do país, acabando com a situação peculiar de Portugal, país em que a extrema-direita até então era insignificante.
Até 2018, Ventura era um militante do PSD que ganhou destaque nas eleições autárquicas de 2018, em Loures, município historicamente comunista. Nessa altura, André Ventura, já conhecido como comentador televisivo de desporto, fez algumas declarações violentas dirigidas contra a comunidade cigana, falando de subsidiodependência e do que considera demasiada tolerância relativamente a algumas minorias. Apesar do caracter xenófobo dessas declarações, a candidatura de Ventura foi mantida, já que contava com o apoio do então presidente do PSD, Pedro Passos Coelho, e ele conseguiu tornar-se vereador. Depois da saída de Passos Coelho do PSD, Ventura cria o partido Chega, mas obteve fracos resultados nas eleições europeias e legislativas de 2019, com menos de 1,5% dos votos. 
Para compreender a ascensão do Chega, precisamos de alargar um pouco o quadro. O sucesso do populista da extrema-direita brasileira, Jair Bolsonaro, no maior país lusófono do mundo, contribui para legitimar o Chega, que não hesitou em importar o duelo Bolsonaro/ Lula para definir-se contra a esquerda portuguesa. Mais impactante ainda, em Espanha, país com quem Portugal partilha uma história de ditadura e de democratização, também o crescimento da extrema-direita consolidou o Chega. 
Em termos mais gerais, o Chega alinhou-se progressivamente com as posições de outras formações europeias de extrema-direita. Progressivamente, o seu discurso contra a etnia cigana deslocou-se para visar os imigrantes, particularmente os muçulmanos, discurso até aí inexistente em Portugal. Quando, na sequência das últimas eleições europeias, o dirigente magiar, Viktor Orbán, anunciou a criação de um novo partido no Parlamento Europeu, “Patriotas pela Europa”, Ventura foi uns dois primeiros a integrar a aliança.
Nas últimas eleições, a formação de extrema-direita seduziu o eleitorado jovem. Segundo uma sondagem à boca das urnas, o Chega ficou em segundo lugar dos votos expressos pelos eleitores, sobretudo do sexo masculino, entre os 18 e 34 anos de idade. Esse sucesso pode ser explicado pela perda da memória da ditadura e pelo desenvolvimento de uma estratégia digital muito eficaz. Particularmente ativo nas redes sociais, nomeadamente no Tiktok, o Chega excede largamente os seus concorrentes com o seu canal do Youtube oficial que partilha intervenções e debates que alcançam centenas de milhares de visualizações.
Mas a presença nas redes sociais foi acompanhada por uma visibilidade mediática injustificada. Assim, nos anos 2022-2023, Ventura foi o terceiro político mais presente nos programas televisivos (apenas ultrapassado pelo primeiro-ministro e pelo Presidente da Républica), embora o Chega não tivesse nesse momento peso eleitoral que justificasse tal presença. Ademais, enquanto o Chega desfrutava dessa exposição, outros partidos eram vítimas de sub-representação nos media tradicionais, como o Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Comunista Português (PCP). 
Para além disso, o discurso do Chega conseguiu atingir pessoas que lutam com problema reais, como a falta de oportunidades profissionais ou uma crise de habitação que parece insuperável e que, ainda em setembro, levou milhares de pessoas às ruas de Lisboa. Posto desta forma, parece compreensível que o discurso de Ventura, feito de várias promessas atraentes, seduza uma parte relevante da população portuguesa, desiludida com os partidos tradicionais. O tema da luta contra a corrupção foi erigido como verdadeiro cavalo da batalha do partido tal como o aumento da firmeza da justiça. Assim, Ventura defende por exemplo a necessidade de limitar o uso dos recursos judiciais, esquecendo que ele mesmo recorreu de uma decisão de justiça que o julgou culpado de ter utilizado uma imagem de uma família como “arma de segregação racial”. Também quer aumentar as pensões e baixar muitos impostos, incluindo os das grandes empresas, unindo-se ao PSD para aprovar a descida do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC). 
Na realidade, o programa do Chega, apresentado nas últimas eleições legislativas, é tipicamente neoliberal. O partido defende o aumento das privatizações em vários setores da sociedade, a redução geral do papel do Estado, um programa anti-imigração e ultra securitário. As medidas sociais, que dificilmente poderiam ser financiadas com apenas um vago projeto de luta contra a corrupção, escondem uma agenda neoliberal e xenófoba.
Para compreender as raízes do mal-estar que levou um milhão de portugueses a votar no Chega talvez tenhamos que recuar até à adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia (CEE), em 1986, que permitiu a afluência de fundos europeus ao país, mas foi acompanhada de uma revisão constitucional, que atacou a herança direta do 25 de Abril, abolindo a irreversibilidade das nacionalizações e abrindo a porta à privatização de vários setores. Encontra-se aqui a origem da trajetória liberal do país, que foi reforçada no período da Troika e que a governação do PS, sobretudo desde 2019, não conseguiu desviar. Nesse contexto, têm-se agravado as desigualdades sociais, criando o terreno do ressentimento que beneficiou o Chega, favorecido pela exposição mediática.
Nem a memória do 25 de abril parece estar a salvo desta aparente viragem de Portugal à direita. No mesmo ano em que foi celebrado o cinquentenário do 25 de abril, os partidos de direita (PSD, CDS, Chega, IL) votaram para celebrar anualmente o 25 de novembro de 1975, um evento da história pós-revolucionária em que foi derrotada a franja mais radical da esquerda militar. Trata-se de um processo de reescritura política da história, que pretende que o país foi realmente liberado a partir desse dia em que Portugal acabou com o comunismo (na realidade o PCP continuou a fazer parte do Parlamento), assim diminuindo a importância inegável da Revolução dos Cravos. A associação 25 de Abril, o PCP e o BE boicotaram a cerimónia. 

Referênciasbibliográficas

AGÊNCIA LUISA, “Manifestações pelo direito à habitação agitam Lisboa, Porto e mais 20 cidades nacionais”, Expresso, publicado em 28/9/2024, em linha: https://expresso.pt/sociedade/2024-09-28-manifestacoes-pelo-direito-a-habitacao-agitam-lisboa-porto-e-mais-20-cidades-nacionais-3590f397, consultado em dezembro 2024.
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HENRIQUES Ana, “Supremo Tribunal de Justiça recusa reapreciar condenação de André Ventura”, Público, publicado em 6/12/2021, em linha: https://www.publico.pt/2021/12/06/sociedade/noticia/supremo-tribunal-justica-recusa-reapreciar-condenacao-andre-ventura-1987653, consultado em dezembro 2024.
MONTEIRO Fábio, “Como o discurso do Chega mudou e o que isso diz da sua estratégia”, Renascença, publicado em 5/3/2024, em linha: https://rr.sapo.pt/fotoreportagem/politica/2024/03/05/como-o-discurso-do-chega-mudou-e-o-que-isso-diz-da-sua-estrategia/368696/, consultado em dezembro 2024.
MONTEIRO Sandra, “O choque da extrema-direita nos 50 anos da revolução”, Le Monde diplomatique edição portuguesa, publicado em abril 2024, em linha: https://pt.mondediplo.com/2024/04/o-choque-da-extrema-direita-nos-50-anos-da-revolucao.html, consultado em dezembro 2024.
NILSSON-JULIEN Estelle e FIGUEIRA Ricardo, “Chega conquista eleitorado jovem: os porquês”, Euronews, publicado em 15/4/2024, em linha: https://pt.euronews.com/2024/04/15/chega-conquista-eleitorado-jovem-os-porques, consultado em dezembro 2024.
PEREIRA Helena, “25 de Novembro: uma comemoração despropositada”, Público, publicado em 20/11/2024, em linha: https://www.publico.pt/2024/11/20/opiniao/editorial/25-novembro-comemoracao-despropositada-2112567, consultado em dezembro 2024.
SIC NOTÍCIAS, “‘Governo estável e maioria sólida’: grupo de militantes do PSD pede acordo com o Chega”, SIC NOTÍCIAS, publicado em 19/3/2024, em linha: https://sicnoticias.pt/especiais/eleicoes-legislativas/2024-03-19-Governo-estavel-e-maioria-solida-grupo-de-militantes-do-PSD-pede-acordo-com-o-Chega-b6f2a964, consultado em dezembro 2024.
Legenda da foto
Revolução dos Cravos : https://www.historiadomundo.com.br/idade-contemporanea/revolucao-dos-cravos.htm

Cette page a été rédigée pour la revue ROMA 5/2024 par Augustin Abdel-Hac et Svetlana Mupemba Kabundi.
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