Uma Rainha do Fado e do Mundo: Amália Rodrigues

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Vou promover o fado no mundo todo. Acho que o fado se tornou a maior paixão de minha vida, são palavras de Bill Clinton.

Engraçado que o ex-presidente dos Estados Unidos fosse um grande amante do fado. Sabe sequer o que é o fado? Já ouviu falar da sua maior embaixadora? Acima de tudo, precisa de compreender que o fado é um canto popular português distinguível pelo seu tom melancólico e que ganhou reconhecimento internacional na década de 1950. A sua internacionalização pôde fazer-se graças a uma figura que é agora emblemática na história deste estilo musical. Esta figura portuguesa produziu-se em vários países. Passando da Broadway para o Japão, fez conhecê-lo em todo o mundo. Além disso é também graças a ela que o Fado foi considerado em 2011 como Património Cultural Imaterial da Humanidade. Neste artigo vamos apresentar-lhe o Fado através da exímia cantora Amália Rodrigues, da sua importância no estabelecimento desta arte, mas também o contexto em que a cantora teve de fazer a sua estreia.

Comecemos então pelo início, pela origem do fado. Ainda agora não temos certezas, o que sabemos é que começou no início do século XIX. Várias versões existem sobre a sua origem: influências de escravos brasileiros, muçulmanos, africanos ou até mesmo de marinheiros. Em todo o caso, o fado nasceu nos bairros populares de Lisboa e vai rapidamente atrair a burguesia. Temos dois principais tipos de fado. O de Lisboa, que aborda temas mais difíceis como a tristeza e a saudade, enquanto em Coimbra abordamos temas mais leves, como o amor. Não é por acaso que este estilo musical tem sido chamado assim porque, evocando não só os temas relacionados ao amor, coragem, às histórias da vida quotidiana na cidade, mas também o destino individual, ele refere-se à palavra latina fatum, traduzida como destino, por outras palavras, algo que acontece independentemente da vontade do homem.

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Como disse João Braga, famoso fadista português:

É natural que a Amália não tenha sofrido influências de ninguém, porque foi ela que influenciou o fado.

Inovou através da sua apresentação, sempre de vestido e xaile negros (é uma imagem que perdurará no imaginário coletivo). O seu posicionamento também faz parte dessa mudança, punha-se em frente dos guitarristas. A inovação sem dúvidas mais interessante continua a ser a fusão do universo poético com o do Fado. Efetivamente, as suas canções incluíram varios poetas do seu tempo, como por exemplo Pedro Homem de Mello, na canção “Fria claridade”, ou também o poeta David Mourão-Ferreira, na canção “Primavera”. No entanto, ela não se limitou só aos poetas contemporâneos, inspirou-se de poetas mais antigos como trovadores galaico-portugueses ou até no grande Luís Vaz de Camões (um dos nomes mais importantes da literatura portuguesa).

A rainha do fado, como gostamos de chamá-la, teria nascido em julho de 1920 na freguesia da Pena, em Lisboa (não temos certeza sobre o dia exato). Viveu uma infância pobre e bastante difícil, começou a cantar no fim dos anos 30 no seu bairro e durante festas locais; para a seguir destacar-se nos restaurantes e clubes onde ganhava até 1000 escudos por prestação (o que era bastante para a época). Quando se estreia no Retiro da Severa, em Lisboa, em 1939, usa o nome Rebordão, que o seu irmão Felipe, já relativamente famoso como pugilista, usava. No ano seguinte substitui esse nome e adota o seu outro nome, Rodrigues, por sugestão de Filipe Pinto, então diretor artístico do Solar Alegria. É só em 1945 que ela grava os seus primeiros discos no Brasil.

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O fado é triste porque é lúcido. Essas palavras da cantora são justas quando vemos o contexto em que Amália Rodrigues evoluiu. A sua fama era tão grande que as pessoas começaram a ter várias teorias como a de que ela era uma colaboracionista do regime. No início da sua carreira estávamos no Estado Novo, quando era difícil exprimir-se, e ainda mais para os fadistas porque eles eram censurados e controlados. Esse regime ditatorial iniciado por Salazar perduraria até 1974.

Quando o Estado Novo foi formado, em 1933, a arte do Fado sofreu profundas alterações internas devidas à nova legislação em vigor. Por exemplo, os fadistas tinham de ter um cartão profissional para qualquer atuação. A prática do canto era regulamentada e os espetáculos só podiam ter lugar em casas de fado. A improvisação era também proibida pelas autoridades, e todas as criações tinham de passar pela censura prévia. Todas estas proibições abrandaram a fibra criativa existente. É assim que o fado é instrumentalizado pelo Estado, que o torna a canção “nacional” ao serviço do regime autoritário. Aparentemente, Amália Rodrigues tinha boas relações com o dirigente político.

Amália foi uma figura emblemática e controversa. Foi acusada de colaborar com o regime, nomeadamente por ter participado nas suas cerimónias oficiais, mas também por ter cantado “Casa Portuguesa”, o que os seus opositores denunciaram como um ato de propaganda paternalista. No entanto, outros factos contradizem as críticas dos seus detratores. Não só trabalhou ao lado de intelectuais e poetas de esquerda que fizeram campanha pelo enriquecimento das canções tradicionais de fado, mas também porque “O Abandono” foi censurado por conter uma mensagem que discordava do regime. Mais tarde, ela negaria qualquer posição política.

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Vemos assim que o Fado não é apenas uma canção popular, mas um modo de expressão que, sob um regime autoritário onde a liberdade de expressão não era evidente, tinha um peso real na sociedade e permitia libertar as consciências. No caso da cantora Amália Rodrigues, na sua estreia nada era ganho e mesmo assim ela conseguiu em poucos anos dar-se a conhecer e sobretudo institucionalizou uma forma de arte que era anteriormente desconhecida do público internacional. Apesar da sua natureza tímida deixou, pela força dos seus braços, a sua marca em outras áreas (o teatro e o cinema foram uma parte integrante na sua carreira). Finalmente, através desta carreira atípica, compreendemos melhor porque é que o fado faz parte integrante da cultura portuguesa.

Referências bibliográficas

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FOTOS

Arte sobre Amália Rodrigues: https://www.flickr.com/photos/jblndl/2278428664/
Fado: Pixabay

José Malhoa, O fado: domínio público
Arte urban: https://www.flickr.com/photos/9099453@N04/4256700718

revue roma blanc 120 Cet article a été rédigé pour la revue ROMA 2/2021 par Clara Briône, Eric Patinha Seromenho.
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