Este texto aborda a questão da violência policial no Brasil e tenta fornecer medidas para combater este fenômeno.[1]
O visionamento de cenas de violência policial, extremamente chocantes, em jornais e diversos meios de comunicação escritos, bem como o filme Un pays qui se tient sage, me motivaram a escrever sobre o tema.
Escolhi o Brasil entre os países onde se fala português porque é de lá que vem minha família materna e não apenas porque a violência policial lá seja regular e explícita.
Tomando a difícil questão da violência policial como ponto de partida, eu gostaria de me interrogar sobre as diferentes maneiras imagináveis de combatê-la. Esta questão da violência policial está de volta nas notícias, até em tempos de pandemia, foi o caso várias vezes nos Estados Unidos, um exemplo de um dos casos mais divulgados nas redes sociais é o assassinato de George Floyd pelas forças policiais, em 25 de maio de 2020.
Apenas cinco dias após a morte de George Floyd, no dia 30 de maio de 2020, uma mulher negra de 51 anos, desarmada e rendida, teve o pescoço pisado por um policial militar em São Paulo (Globo 2020). O jornal brasileiro Folha de São Paulo, em maio de 2020, evocando a situação do Rio, diz:
Foram 177 óbitos em decorrência de intervenções de agentes públicos, 43 % a mais do que no mesmo mês no ano passado e o equivalente a uma morte a cada quatro horas.
(Barbon 2020)
Outros crimes durante o mesmo período de tempo diminuíram em número, tais como homicídios dolosos e roubos de rua.
Para a redação do artigo que segue eu me baseei em vários artigos da imprensa (Globo, El País Brasil, entre outros) e algumas pesquisas, algumas entrevistas com personalidades que atuam na área e relatórios de organizações não governamentais.
Como um primeiro passo para combater a violência excessiva da polícia, poderíamos considerar um melhor treinamento para os policiais, bem como o estabelecimento de uma estrutura rigorosa dentro da qual a violência possa ser exercida.
Nosso modelo polical atual herdou duas tendências: uma burocrático-militar e outra de aplicação da lei. A profissão de policial é constantemente orientada pelo crime,
os policiais são pressionados a “produzir” prisões e multas, sendo esperado que façam seu trabalho usando a lei para punir aqueles compreendidos como merecedores.
(Poncioni 2005)
Esta concepção do papel da polícia negligencia completamente alguns dos aspectos mais importantes do policiamento, como ações para prevenir o crime, além de mostrar falhas em sua eficácia no combate contra o crime. Isto é demonstrado quando em junho de 2020, com a suspensão das operações policiais devido à pandemia, a porcentagem de mortes cometidas pela polícia caiu de 73 %.
Simultaneamente, durante a quarentena, também houve retração em outros dos principais índices de criminalidade, como os de homicídio doloso. O resultado, para especialistas, evidencia que a diminuição da letalidade policial não implica um aumento da violência.
(Altino 2020)
Como outra solução alternativa, poderíamos informar os policiais e os cidadãos sobre seus diferentes direitos e deveres. A violência policial viola os direitos humanos, como nos lembra a Anistia Internacional (Globo 2020).
Não devemos permitir que seja criado na mente das forças policiais um sentimento de impunidade. Isto requer uma mudança no discurso da mídia, porque
esse “ discurso público dá legitimidade a execuções sumárias” pela polícia no Brasil e pode “aumentar a impunidade e reforçar a mensagem de que os agentes do Estado estão acima da lei”
(Brasil: Eventos de 2019)
Segundo Aziz Ab’Sáber, esta ideia de ordem acima da lei, que tanto permeia a cultura brasileira, remonta ao tempo do regime escravista sobre o qual o Brasil foi construído.
No período colonial, os senhores de escravos faziam valer sua própria “ordem” no interior das propriedades, principalmente em relação ao corpo negro escravizado.
(Naidin 2020)
As comunicações feitas pelo Presidente Bolsonaro são preocupantes, ele “tem incentivado a polícia a executar suspeitos (Brasil: Eventos de 2019).
Suas declarações ultrajantes são acompanhadas de atos políticos, por exemplo “ seu governo encaminhou um projeto de lei ao Congresso que, segundo ele, era destinado aos policiais, para permitir que juízes suspendessem sentenças de pessoas condenadas por homicídio se tivessem agido por “escusável medo, surpresa ou violenta emoção” (Brasil: Eventos de 2019). O presidente também disse “ que indultaria policiais condenados caso considerasse a condenação “injusta” (Brasil: Eventos de 2019).
Campanhas de conscientização e treinamento devem ser implementadas para promover o anti-racismo, dado que o racismo e a violência policial estão fortemente ligados. Num país como o Brasil, uma pessoa negra tem mais probabilidade de sofrer violência ou ser morta pela polícia do que uma pessoa branca.
Como indicado pela Rede de Observatórios da Segurança,
o racismo é o motor do funcionamento pleno das instituições herdadas de um país escravista, de uma elite colonial, e essas instituições agem conferindo desvantagens e privilégios a partir da raça.
(Contéudo 2020)
Uma das consequências do fato de que este racismo é estrutural é que, para pôr fim à violência cometida pelos policiais contra os negros, não basta demitir o policial que se comportou mal, nem afirmar que os policiais devem limitar-se a cumprir as ordens recebidas.
Ao contrário, a reforma policial é necessária e deve ser implementada, e a questão racial deve ser colocada no centro do debate.
Este racismo está constantemente sendo invisibilizado. Uma pesquisa da Rede de Observatórios da Segurança mostra o “esquecimento” da questão do racismo e da raça na mídia quando se trata de violência policial:
dos mais de 12 mil registros analisados, apenas 50 deles tratavam sobre racismo ou injúria racial.
(Rocha 2020)
O silêncio é cúmplice, ele permite a perpetuação da violência racial.
Uma outra opção possível para reduzir a violência policial seria utilizar novas tecnologias. Podemos seguir a ideia do Ministério Público em São Paulo de
instalar câmeras e outras tecnologias para ajudar a investigar a má conduta policial.
(Brasil: Eventos de 2019)
As redes sociais também têm um papel a desempenhar nesta luta contra o abuso policial, é extremamente importante poder divulgar vídeos da brutalidade policial. Estas imagens permitem restabelecer o que aconteceu e tornar a violência visível.
Um caminho também a ser desenvolvido é o apoio aos movimentos sociais, manifestações de rua e a consciência generalizada da existência de um problema.
Para o ativista Zulu Araújo, apesar do fato de que a violência policial que visa a juventude negra em bairros desfavorecidos ser cada vez mais explícita nestes tempos de pandemia, estas populações se tornaram ainda mais vulneráveis. A conscientização do problema ainda não ocorreu e ele coloca a culpa no que ele descreve como um processo instituído pelo Estado brasileiro de
legalização do genocídio de jovens negros, e como seus corpos são desumanizados a ponto das forças de segurança se virem no direito de agredi-los e exterminá-los. São mortes que não sensibilizam nem geram sentimento coletivo de culpa.
(Pires 2020)
Para poder esperar por uma mudança é necessária uma mobilização popular, encontramos um exemplo no protesto no dia 4 de julho de 2020 contra o racismo e a violência policial em Cidade Tiradentes, na Zona Leste de São Paulo (Mídia Ninja 2020).
Outro exemplo de uma iniciativa popular é o Movimento AR que
é uma mobilização voluntária, com o propósito de realizar mudanças e transformações sociais através de ações efetivas de combate ao racismo, ao preconceito e à discriminação racial contra negros.
(Movimento AR)
Além disso, a mudança social requer uma mudança na opinião pública, e ainda há trabalho a ser feito,
uma pesquisa Datafolha de 2016, aponta que a frase “bandido bom é bandido morto” era defendida por 57% dos brasileiros. No Brasil, violência policial elege presidente, deputado, senador,
diz Alcadipani.
(Folha de S.Paulo 2020).
Em conclusão, este problema de violência policial traz o Brasil de volta ao seu passado colonial porque vimos que os mais afetados são as populações negras e desprivilegiadas. Assim, eles acumulam dois tipos de desigualdades, uma racial, a outra econômica. Como essas desigualdades estão tão profundamente enraizadas na sociedade brasileira a fim de lutar e esperar pôr fim à brutalidade policial, precisamos mudar o sistema atual em termos de acesso à habitação, à economia, à educação, ao acesso à saúde, às relações entre membros da população e com o Estado. Esta mudança de sistema requer uma conscientização, mas também ações concretas, como algumas das listadas acima, para isso, a mentalidade e as ações de toda a população devem mudar. Só podemos esperar no futuro aumentar a participação dos cidadãos no debate político, bem como o desenvolvimento de nossas democracias !
Referências bibliográficas
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BARBON J., 2020, “Mortes por policiais crescem 43% no RJ durante quarentena, na contramão de crimes”, Folha de S.Paulo, 26/05/2020, https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/05/mortes-por-policiais-crescem-43-no-rj-durante-quarentena-na-contramao-de-crimes.shtml, consultado em 06/12/2020.
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FOLHA DE S. PAULO, 2020, “Letalidade policial bate recorde, e homicídios sobem durante a pandemia em SP”, Folha de S.Paulo, 24/07/2020, https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/07/letalidade-policial-bate-recorde-e-homicidios-durante-a-pandemia-em-sp.shtml, consultado em 04/12/2020.
GLOBO, 2020, “Anistia aponta que 2019 foi marcado por retrocessos para os direitos humanos no Brasil”, Globo, 27/02/2020, https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/02/27/anistia-internacional-aponta-que-2019-foi-marcado-por-retrocessos-para-os-direitos-humanos-no-brasil.ghtml, consultado em 04/12/2020.
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***, “Manifesto”, Movimento AR, http://movimentoar.com.br/manifesto/, consultado em 07/12/2020.
***, 2020, “A quebrada resiste: Protesto contra racismo e violência policial em Cidade Tiradentes”, Ninja, 07/07/2020, https://midianinja.org/news/a-quebrada-resiste-protesto-contra-racismo-e-violencia-policial-em-cidade-tiradentes/, consultado em 03/12/2020.
Imagens
POLÍCIA: https://www.francetvinfo.fr/replay-radio/en-direct-du-monde/la-police-bresilienne-parmi-les-plus-meurtrieres-au-monde_1768791.html
POLICIAL: https://www.20minutes.fr/monde/2701319-20200122-bresil-police-rio-tue-1810-personnes-2019-record
FAVELA: https://www.leparisien.fr/international/bresil-les-policiers-ont-la-gachette-de-plus-en-plus-facile-22-08-2019-8137314.php
[1] NB: Este artigo foi escrito de acordo com a norma do Português do Brasil.
Cet article a été rédigé pour la revue ROMA 1/2020 par Lúcia Meunier. |